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O Ecrã Inclinado: Como a Televisão Portuguesa se Tornou um Espelho da Direita

Atualizado: 27 de out.

O pluralismo não é um ornamento da democracia — é o seu alicerce. Se o comentário televisivo se tornou refém de interesses e conveniências, cabe aos media recuperar a ética do contraditório e devolver ao público o direito de ouvir o país inteiro.


Há muito que os estúdios de televisão deixaram de ser apenas lugares de informação: tornaram-se câmaras de ressonância onde a política se reduz a espetáculo, e o comentário se confunde com verdade.


O problema não é novo, mas o desequilíbrio tornou-se tão evidente que já não se trata de perceção subjetiva — é uma realidade empírica.


A televisão portuguesa, nos principais canais generalistas, apresenta um enviesamento estrutural à direita, mascarado por uma estética de pluralismo que, em rigor, raramente existe.


Quem percorre a grelha televisiva de um domingo à noite encontra quase sempre o mesmo figurino: antigos ministros de governos conservadores, assessores de direita reciclados em analistas neutros, colunistas de imprensa económica, e uma ou duas vozes de centro-esquerda colocadas como contraponto folclórico — a quota simbólica da discordância.


Os formatos mudam, mas a fórmula repete-se.


Entre Linhas Vermelhas, Fora do Baralho, Crossfire e tantos outros programas, a diversidade aparente é apenas um reflexo do mesmo espelho ideológico.


É neste terreno que se forja a opinião pública.


O espectador comum, ao ouvir os mesmos enquadramentos sobre impostos, serviços públicos ou segurança, acaba por interiorizar uma linguagem que normaliza as teses da direita: “o Estado gasta demais”, “os professores exigem privilégios”, “os sindicatos bloqueiam o progresso”.


Frases simples, repetidas com serenidade e autoridade televisiva, ganham o peso de uma evidência.


Não se trata de censura — trata-se de seleção sistemática.


Escolhe-se quem comenta, quem enquadra, quem explica.


E ao escolher, cria-se uma fronteira invisível entre o que é considerado razoável e o que é relegado para o campo do “radical”.


É assim que as ideias progressistas, feministas ou social-democratas acabam retratadas como excessos ideológicos, enquanto a retórica neoliberal é tratada como senso comum.


Um dos sinais mais reveladores está na linguagem usada pelos próprios jornalistas que moderam estes debates.


Quando um convidado critica as privatizações, o moderador pergunta: “Mas isso não é utópico?”; quando outro defende cortes fiscais para empresas, a questão transforma-se em “Mas não será esse o caminho inevitável?”. A neutralidade morre nas perguntas.


Este desvio tem consequências sérias.


O comentário político televisivo é hoje uma das principais fontes de socialização ideológica em Portugal.


Os jovens que não leem jornais formam a sua perceção política através dos rostos que aparecem nos ecrãs. E esses rostos pertencem, esmagadoramente, ao mesmo universo social e cultural: homens brancos, de meia-idade, oriundos da elite universitária lisboeta, com trajetórias profissionais interligadas entre política e comunicação.


O caso não é exclusivamente português.


Em vários países europeus, o jornalismo político atravessa uma crise de representatividade. Mas o problema adquire aqui uma gravidade particular porque o país continua a confundir notoriedade com competência.


Um ex-ministro torna-se imediatamente “analista”; um comentador económico é tratado como “especialista em sociedade”; uma antiga deputada é apresentada como “observadora independente”.


O ecrã legitima, e a legitimidade torna-se poder.


A televisão cria a ilusão de que todos os lados estão representados. Mas o que temos, na verdade, é um sistema fechado onde a pluralidade é encenada.


Há uma esquerda convidada apenas para cumprir o ritual da diversidade, e uma direita permanente, com acesso contínuo ao microfone.


A consequência é dupla: por um lado, esvazia-se o debate; por outro, gera-se nos espectadores a sensação de que a direita é a posição natural, moderada, patriótica — e tudo o que a desafia é ruído.


Em 2025, esta tendência acentuou-se.


A extrema-direita, que antes precisava de conquistar espaço, passou a beneficiar de um ambiente discursivo já preparado para a sua linguagem.


Os debates sobre “imigração”, “segurança” ou “identidade nacional” deixaram de ser marginais — tornaram-se rotineiros, enquadrados como “temas sensíveis” a tratar com “ponderação”, o que na prática significa cedência simbólica ao discurso do medo.


O curioso é que poucos jornalistas se reconhecem como parte deste processo.


Muitos acreditam sinceramente que mantêm neutralidade.


Outros, por receio de parecer militantes, refugiam-se num profissionalismo assexuado que, em nome da imparcialidade, acaba por reforçar o status quo.


Assim, o medo de ser parcial transforma-se na pior das parcialidades: a indiferença.


A televisão portuguesa não se tornou um espaço de confronto de ideias, mas um teatro de certezas. E quando a certeza domina, a democracia empobrece.


O pluralismo não se mede pelo número de microfones, mas pela autonomia das vozes.


O verdadeiro equilíbrio mediático não se alcança somando comentadores de partidos diferentes, mas abrindo espaço para diferentes visões do país — das universidades, das periferias, das artes, das associações cívicas, das escolas, das ruas.


A questão é: quem escolhe?


Quem define o elenco dos programas de comentário político?


Quais são os critérios?


A resposta raramente é pública. E é aí que reside o cerne do problema.


A televisão portuguesa opera, na sua maioria, sob lógicas de mercado e afinidades pessoais. Ex-governantes tornam-se comentadores, comentadores tornam-se assessores, e o ciclo fecha-se. Pouco importa a ideologia declarada — o que conta é a integração no sistema.


Os exemplos são inúmeros.


Nas últimas semanas, um debate sobre habitação juntou três economistas de linha liberal e nenhum especialista em políticas públicas.


Noutra emissão, uma discussão sobre imigração reuniu dois ex-políticos da direita e um jornalista do mesmo meio, sem a presença de sociólogos ou juristas.


O resultado é previsível: as conclusões repetem-se, os enquadramentos não se renovam, e o espectador sente que ouviu tudo aquilo antes — porque ouviu mesmo.


O papel das televisões públicas deveria ser o de contrabalançar esta uniformidade, oferecendo espaço à diferença e à dissidência argumentativa.


Mas a RTP, demasiado sensível às pressões partidárias e corporativas, muitas vezes reproduz o mesmo padrão. Falta-lhe a coragem de desagradar.


Há, claro, exceções e jornalistas que resistem.


Mas são exceções que confirmam a regra.


A força do consenso é tal que até as vozes críticas são moldadas pelo enquadramento dominante: para poderem falar, precisam moderar o tom, simplificar a linguagem e evitar parecer “de esquerda”. A autocensura tornou-se hábito, e o hábito, convenção.


A questão não é apenas política — é ética e cultural.


A televisão molda o imaginário coletivo.


Ao longo dos anos, construiu-se um espaço de comentário onde ser conservador é ser “prudente”, ser neoliberal é ser “realista”, e ser progressista é ser “ideológico”.


As palavras perderam simetria.


A linguagem, como um espelho inclinado, devolve sempre o mesmo reflexo.


O que está em causa é a qualidade do debate público e, com ela, a saúde da democracia. Se a televisão é o espelho da nação, é urgente endireitar o espelho.


Mas como fazê-lo?


Deverão as televisões públicas estabelecer quotas reais de representatividade ideológica?


Deverá a Entidade Reguladora para a Comunicação Social avaliar a diversidade dos painéis?


Ou dependerá tudo de uma mudança de cultura profissional, onde o comentário volte a ser serviço público e não entretenimento ideológico?


Estas perguntas não têm resposta fácil, mas abrem o caminho para uma reflexão necessária.


Autor

Centro Editorial My Fraternity



No próximo texto — Quem Fala em Nome de Portugal? A Responsabilidade Democrática dos Media — procuraremos compreender como a pluralidade mediática pode ser reconstruída: não apenas por obrigação legal, mas como um dever moral de quem informa.


Painel de debate televisivo com múltiplos microfones — metáfora da responsabilidade democrática dos media.
Microfone e luz de estúdio representando a voz pública nos media portugueses.


Fhoto - © My Fraternity / Glenn Carstens - Peters (Unsplash) / Wix Media Support



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