Obrigadinha, Mucha
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Obrigadinha, Mucha

Obrigadinha, Mucha, por R.F.


Tétrico, ainda não sei por que me prestei a isto. Odeio cemitérios e agora é tarde. Não é bem ódio, talvez só estranhe a atracção que exercem sobre mim. Tudo tão calmo, tão resolvido. Lembro-me do meu avô, coitadinho. A minha avó perseguiu-o durante anos para comprar um jazigo e quando ele o comprou finalmente foi o primeiro a estreá-lo. Não gosto de jazigos, lembram-me o Portugal dos Pequenitos, prefiro passear por entre as campas e fantasiar os epitáfios. É um exercício que toda a gente deveria fazer em dias normais. E é isso que faço, neste momento, atrasando o passo. Ainda assim, é um cenário propício àquele balanço de vida que julgamos que só a distância faculta. Mentira. Há pessoas que viajam até à Índia ou ao Tibete para descobrirem respostas que estão, que sempre estiveram, «num cemitério perto de si».


Este é o dos Prazeres, aqui jazem os restos mortais dos meus irmãos. As pessoas dizem «vou visitar o meu marido», mas a maioria limita-se a falar com uma dália de plástico. É erro pensar que os mortos ficam aqui, têm mais que fazer. Já avisto o homem que me espera, está a olhar o relógio. Não me conhece, eu explico: ofereci-me para assistir ao levantamento das ossadas de uma mulher que, em tempos, foi minha rival. Uma verdadeira rival, igual às de Max du Veuzit.


Quisemos o mesmo homem, como ainda hoje se quer nas novelas. No fim, levou ela a taça. Foi uma luta inglória, o objecto era indiferente, o assunto era nosso. Se a meio nos tivessem substituído esse homem por outro qualquer se calhar nem daríamos por isso. Namorava comigo quando a conheceu. Era daquelas mulheres formidáveis que, antes de eles repararem nelas, já nós detectámos a ameaça. Era melhor e pior do que bonita, era fogo! Meteu-se na minha vida – adoro esta frase – numa noite em que fui jantar com ele e com uns amigos que a trouxeram. Roubou-mo – também adoro esta – em duas penadas. Desvairou-o a ponto de conseguir desmarcar-me antes do capuccino – tiro-lhe o chapéu. Sim, ele talvez gostasse de mim, mas com uma mulher daquelas nada conta, precisou de a conhecer.


Conhecer é eufemismo, dormir com ela. Saí antes de o empregado trazer a conta: «Fiquei cansada de repente, vou andando. Mas fiquem vocês, ainda não tomaram café.» Falou-me no dia seguinte, penitente, tive que o ajudar: «Hoje não dá jeito. Quando der telefono-te.» O silêncio era júbilo. Aquela licença que lhe permitia provar a maçã e depois voltar para mim enchia-o de gratidão. Mas a outra não era uma maçã, era um pomar vastíssimo e não nasci ontem. A verdade é que ainda não se tinha enjoado quando me ligou: «Sou eu.» «Eu quem?» «Eu.» «Desculpa, não te reconheci...» Casou-se com ela, teve três filhos, nunca mais me procurou. Falou-me um dia: «Não sei se sabes, a Mucha morreu.» «Que horror, que impressão, e tu?» A seguir, vivi eu com ele. Não me perguntem porquê, é a vida. E fiz bem. Vinha educado pela Mucha e, graças à paciência dela, pude ser feliz. Sei que, passados cinco anos, lhe pediram para assistir ao levantamento das ossadas da falecida, aqui nos Prazeres. Mostrou-se incapaz, disse-lhe «vou eu». Aqui estou, portanto. Aproximo-me do coveiro, nunca pensei ser assim que se faz: está neste momento a lavar os ossos da Mucha como se desencardisse colarinhos; virou um caixote de lixo ao contrário e é nele que os poisa, um a um, para os secar ao pouco sol que faz hoje.


Senhores: como é pequena, afinal, a caveira da Mucha! O homem assobia e fala, sem nenhum respeito pelos sugestionáveis: «Vê-se que morreu nova, coitadita, olhe lá esta tíbia... Havia de ver outras que lavei: uma renda!» A caveira da Mucha, agora a fitar-me, pousada no caixote de lixo: «Olá, minha estúpida.»


O homem não ouviu, continuava a lavá-la, costela a costela. «Olá», disse eu, enquanto pensava: «O ser humano não foi feito para morrer. É impossível! A morte não pode ser mais do que um acidente.» «Tens toda a razão», disse ela, «mas a vida também.».


Percebi mais tarde, quando cheguei a casa e me ligaram a dizer que ele tinha morrido num desastre de automóvel. Não lhe disse, mas podia ter-lhe dito: "Não vás mais longe, tu própria foste um acidente.» Nunca, como hoje, nos Prazeres, estive tão perto de ver na escuridão. E foi só ali que descobri que os mortos e as mortas trabalham, continuam a trabalhar, fartam-se de trabalhar para nos explicarem as coisas. «Tens toda a razão», disse ela. E pensar que ainda há quem vá ao Tibete para não os ouvir?


(RF, em dia de viragem)

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