O ÚLTIMO REDUTO DA DIGNDADE DA PESSOA HUMANA | a propósito da filmagem de Paulo Rangel ébrio
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O ÚLTIMO REDUTO DA DIGNDADE DA PESSOA HUMANA | a propósito da filmagem de Paulo Rangel ébrio

O ÚLTIMO REDUTO DA DIGNDADE DA PESSOA HUMANA

(a propósito da filmagem de Paulo Rangel ébrio)


Leiam, que instrui:


«Certos comentários formulados acerca da minha solidariedade com o eurodeputado Paulo Rangel, do PSD, acerca do vexame que lhe foi infligido, obrigam-me novamente a regressar ao tema. Por um lado, para reafirmar a minha solidariedade para com ele ; por outro lado, para me dissociar de todos os que arguem que nenhuma ou muito pouca solidariedade lhe deve ser manifestada.


Passarei consequentemente à defesa do meu ponto de vista.


Ao fim de muito viver, reconheci-me espiritualista. Ou seja, eu hoje defendo a necessidade dos grandes princípios espirituais se sobreporem à matéria bruta.


Os princípios de que falo são os do Belo, do Bom, do Justo , do Equânime e também os da Dignidade Humana. Essa Dignidade Humana ultrapassa o indivíduo em concreto . Está nele e em todos os que definem a espécie à qual pertencemos. Por isso, há nos seres humanos um reduto de inviolabilidade. Este reduto surpreende-se em Jack, o Estripador, em Afonso Costa, em Torquemada, na Madre Teresa de Calcutá, no Dalai Lama, em mim , em ti e em todos nós. Se assim não fosse ou se assim não puder ser, então estaremos condenados a diferenciar entre homens e bichos, considerando que na nossa própria espécie uns são homens e outros são animais inferiores. E com a agravante de tal diferenciação não ser da competência de anjos ou de deuses, mas de todos e de cada um de nós.


Há nos seres humanos um núcleo de Dignidade inerente ao simples facto de terem nascido dentro da espécie. Se isto não for reconhecido, então teremos de questionar a abolição da pena de morte. E se cada um de nós repudiar este facto, então poder-se-á investir numa variedade nova de Zorro da espécie , fazendo "justiça" por conta própria e lançando anátemas do cimo da sua admirável omnipotência. Confesso que me atemoriza tal hipótese. Combaterei esta possibilidade com todas as minhas forças, porque sempre senti uma incoercível repulsa pelos sicários da Inquisição, pelos carcereiros de todas as polícias políticas, pelos vigilantes dos campos de concentração hitlerianos e pelos amigos de Pol Pot e de Estaline.


Um conselho que eu deixaria aqui aos que acham "justiceira" a exposição à troça do deputado Rangel é o de pensarem na possibilidade de lhes ser aplicado igual tratamento.


Nos finais do Século XVIII Kant fez a notável descoberta de uma regra de conduta que designou por imperativo categórico. Tal imperativo, de base ética é este : procede sempre de modo a que o teu agir possa arvorar-se em regra universal, em recomendação de comportamento para todos. Falo em "descoberta" com alguma ironia, pois igual preceito poderemos encontrar nas pregações de Jesus Cristo.


O que conforta os adversários de Rangel é o facto de se imaginarem infinitamente mais sábios, mais justos, mais humanos, mais decentes do que o próprio Rangel. Mas isto pode ser apenas um suposto fátuo. É que os partidários de Rangel considerá-lo-ão muito mais sábio, justo, humano e decente do que todos os seus críticos. Daqui resulta esta consequência inapelável : o grupo dos que execram Rangel julga em causa própria. E julga, diabolizando o que está fora do seu próprio campo e divinizando tudo o que situam no seu campo privativo.


Verdadeiramente, não sendo eu "compagnon de route" de Rangel, tenho, ao menos, a humildade de conferir às minhas convicções o simples estatuto de meras "hipóteses de verdade". Habituei-me a colocar sob suspeita tudo aquilo em que acredito. E faço-o por me imaginar democrata. Se o não fizesse , talvez não me considerasse apenas habilitado a execrar Rangel. Poderia chegar ao ponto de lhe querer dar um tiro ou de o querer passar pela guilhotina. A Democracia é um bem raro e sempre em estado de alerta, porque se vê obrigada a sobreviver num mundo onde preponderam as almas escondidas ( mas referenciáveis ) de déspotas.


Falei numa armadura intangível de Valores e incluí entre eles a Dignidade Humana. É esta ponderação que me obriga a dizer que a minha solidariedade com Rangel é homóloga e irmã-gémea à solidariedade que me merece a vida dos meus irmãos de espécie. Platão teve toda a razão quando situou nas regiões superiores as Ideias Puras do Bem, da Perfeição, da Beleza e da Justiça. São uma espécie de armadura áurea que nos arranca da lama e nos faz sonhar com o direito à Eternidade. E não há, quanto a isto, pluralismo de opção : ou participamos destes Valores e Princípios ou os rejeitamos. Por isso, no meu caso, não me convence o discurso da maldade e diabolização inerentes a Rangel.

Neste caso, o que me move não é apenas o direito que reconheço a Rangel à sua própria dignidade, por infinitas que sejam as queixas que um dos campos sectários projecta sobre a outra parcialidade sectária. O que me mobiliza é a dita consideração do imperativo kantiano. Nenhum de nós estará livre que na tábua de juízos do campo que nos é adverso sejamos nós os execráveis. No limite, poderemos portanto ser tão empurrados para os enxofres do Inferno quanto Rangel. Mas, neste caso, pelos amigos, seguidores e partidários de Rangel. Este é o princípio da guerra civil surda, a qual poderá tornar-se explícita a qualquer momento.


Esta demopédia de Valores ou existe ou não existe, Não consente os "mas" do costume. Se existe, independentemente de condenações pontuais e ocasionais relativas ao que Rangel diz e faz, é uma demopédia que torna indefensável a vingança de filmar a bebedeira de Rangel e de fazer disso um feito combativo de proporções épicas. Tratou-se apenas de uma pulhicezita de pequenos pulhas. Que pode ser replicada em mim e em ti, leitor atento, a um qualquer momento. Celebrar-se-á então, à margem dos Valores platónicos eternos, o direito universal à pequena pulhice, ao pequeno maquiavelismo de circunstância.


Por este facto a solidariedade com Rangel é, a meus olhos, antes de tudo e de mais, a solidariedade com a condição humana. É ela que nos faz considerar miserável uma filmagem de uma bebedeira para desqualificar quem quer que seja. É ela que me leva a defender-me da mediocridade dos vingativos. É em nome da Dignidade Humana que nós - prefiro escrever "alguns de nós" - já condenámos dentro de nós a pena de morte, quer para Giordano Bruno, quer para Jack, o Estripador. É em nome dela que nós - pelo menos "alguns de nós" - condenamos tudo o que se apresente como dogmático, como pesporrento,, como código dos pequeninos vingadores, que nem sequer se apercebem da própria alma , tão pequena e tão deplorável.


Eu não defendo Rangel. Eu digo o que um dia foi dito a um general franquista , que se ofendeu com Unamuno por este o não cumprimentar. Disse o tal General : " Dom Miguel de Unamuno, usted me ofende" . Unamuno replicou : " No, General, tan solo me defiendo" . A minha maneira de me defender da intolerância e da soberba do Eu , cada vez mais em crescendo nesta pobre sociedade lusitana, é manifestar a todos os Rangéis ignobilmente ofendidos no Valor da sua Dignidade, o pequeno Valor da minha solidariedade. Com isto, não estou a salvar Rangel. Estou a salvar-me a mim mesmo , na minha irrenunciável condição de mortal»



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