Miguel Torga e Arganil
Homenagem
Pediram-me palavras que sei não ter, mesmo que diga tudo o que sei, que faça tudo que possa, que creia em tudo o que ouvi, ou que acredite em tudo o que li e estudei.
Diz-se e bem que quem diz tudo o que sabe, quem faz tudo o que pode, quem crê em tudo o que ouve, quem gasta tudo que tem, muitas vezes gasta o que não pode, julga o que não vê e faz o que não deve e nesse erro não quero incorrer.
Basta-me assumir que “quem faz o que pode faz o que deve”
Por ordem cronológica, de modo a não espalhar o que juntei, a primeira referência que deposito são as palavras do poeta no Cine Teatro de Arganil “Alves Coelho”, inaugurado a 9 de Maio de 1954 :
“Erguido por teimosia de cabeçudos beirões da mesma maneira e com o mesmo espírito com que antigamente se construíram catedrais: cada um trazendo a sua pedra”, (excerto de uma carta enviada ao actor João Villaret , convidando-o para a inauguração ) .
O que diria hoje Miguel Torga vendo o Teatro fechado há anos..
Logo ali, no Largo Neves e Sousa mais conhecido por Fonte de Amandos, no monumento ao Embaixador Dr. Alberto de Veiga Simões pode ler-se:
“Um dos filhos mais ilustres de Arganil que os esbirros de um déspota perseguiram até à morte”.
Palavras retiradas de um discurso feito em 23 de Abril de 1976 , num comício do Partido Socialista, realizado em Arganil.
Olhando para lá da Mata da Misericórdia impõe-se a presença do Centro de Saúde de Arganil e do Hospital Condessa das Canas onde o poeta trabalhou anos a fio em prol dos mais pobres e onde, por sua vontade expressa , se encontra o seu consultório e espólio médico de Coimbra, em doação à Santa Casa da Misericórdia de Arganil...
Foi seu testamenteiro o Doutor Fernando Valle e é no seu monumento que se pode ler desde 29 de Julho de 1989:
“Nenhuma prepotência o vergou e desviou do recto caminho cívico da tolerância, da justiça e da liberdade”.
(Excerto da comunicação proferida na cerimónia do 90º aniversário do Doutor Fernando Valle ).
Já em Côja tinha afirmado a 9 de Dezembro de 1973:
“É escusado. Não posso ter outro partido se não o da Liberdade”.
Palavras que decoram as razões do nome da Biblioteca Municipal Miguel Torga em Arganil. Também aos olhos de todos se pode ler em Côja, na margem esquerda do Alva, no monumento ao Doutor Alberto da Maia e Cruz do Valle inaugurado a 14 de Junho de 1956:
“Era um homem bom como já não há. Viveu e morreu discretamente, com medo de acordar os interesses da vida e as pompas da morte. E quem o conheceu só poderia desejar que a limpidez do Alva ficasse a reflectir-lhe a memória pela eternidade fora”.
É, talvez já, esta profunda amizade e estima pela família de Fernando Valle que ressalta do “Diário II “ quando a 27 de Setembro de 1942 como que anunciando a partida de Vila Nova , em Miranda do Corvo para Arganil (ligação igualmente significante com o Doutor Martins de Carvalho ) :
É bonito este Alva. Manso, claro, calado, sem a tragédia do Douro nem a grandeza do Tejo, é bem o Rio da Beira que define a Beira.
O Mondego envenenou-se em Coimbra dum lirismo de borla e capelo, que o desnacionalizou; o Zêzere deu-lhe uma retórica de sermão do encontro, que lhe tira o sentido; o Ceira, com a façanha do Cabril esgotou-se.
De maneira que ficou a representar , a Beira das ovelhas, dos pinhais e duma tenacidade sem palavras este veio de água pura , que desce da Estrela, toca um milheiro ou dois de rodas, lava os avós, os filhos e os netos da mesma família e acaba pudicamente quando tem a sua missão cumprida”.
É nestes “Diários” que a região de Arganil é levada ao colo a mais de oitenta países em dezesseis línguas.
Arganil, Barril do Alva, Cepos, Pombeiro da Beira, Teixeira, Côja, Salgueiral, Vila Cova e Piodâo.
É aqui que a 7 de Abril de 1991, no Piodão, se despede do concelho de Arganil e de Portugal. Foi aqui também , que a 12 de Agosto de 2007 foi celebrado e mandado gravar as suas palavras em monumento da Editorial Moura Pinto:
“Com o protesto do corpo doente pelos safanões tormentosos da longa caminhada, vim aqui despedir-me do Portugal primevo.
Já o fiz das outras imagens da sua configuração adulta.
Faltava-me esta do ovo embrionário.”
A 16 de Julho de 1946 ( Diário X ) Miguel Torga escreve em Arganil:
“Medicina, literatura e política, por ordem decrescente. A obrigação , a devoção e a maceração”.
E escuto o que quero ouvir:
A força, a beleza e a sabedoria em três representações de profunda amizade e estima que avanço por ordem cronológica:
1 . Às irmãs de S. José, como se fosse aprendiz:
Hospital de Arganil, 1 de Dezembro de 1966
“Acabei de operar, estou a fumar um cigarro e a pensar nas freiras que circulam à minha volta . Bondosas, prestáveis, pacientes, injectam, fazem curativos, despejam, limpam.
Mas sente-se que embora presentes e funcionais , pairam acima da realidade. Que actuam fora do jogo da vida. Parece , até, que nos olham com certa dose de comiseração por tanta teima que pomos nos actos temporais. Que força interior escuda estas mulheres?
Que voz imperativa as chamou , que largam tudo para a ouvir, desfazendo laços afectivos, calcando instintos, desprezando bens e honrarias? De onde lhes vem a paz que trazem estampadas no rosto, e que nenhum vendaval perturba ?
Sei o que me responderiam se as interrogasse. Mas não quero ouvir palavras que na boca delas soariam a evidência e nos meus ouvidos ressoariam a mistério. Deus , fé , vocação… com três substantivos destes no processo, de que ilações cavilosas não seria capaz o demónio chicaneiro que mora dentro de mim! Presunção, simpleza...só isso! E o pior é que o problema ficava na mesma. Era cobrir apenas com outros substantivos, mais pedantes ainda, a minha perplexidade. Santas irmãs!
Mal imaginam, tão brancas de corpo e alma, o bem e o mal que me fazem.
O bem de serem como são, e o mal de não poder entende-las”.
Lembro que Miguel Torga – Adolfo Correia Rocha-começou a exercer a sua especialidade de otorrinolaringologista com consultas no Pavilhão do Hospital partilhando o seu consultório com o Dr. Quirino Sampaio. A 21 de Novembro de 1948 no citado pavilhão, a convite do Dr. Fernando Valle e dando desse facto conta “A Comarca de Arganil” de 16 de Novembro de 1948:
“Dr. Adolfo Rocha-a partir do próximo domingo, começa a dar consultas no Hospital desta vila , o Dr. Adolfo Rocha, especializado em ouvidos , nariz e garganta, com consultório no Largo da Portagem nº45-1º , em Coimbra, onde o seu nome figura ao lado dos mais distintos clínicos da especialidade.
Com as consultas mensais que o Dr. Adolfo Rocha passa a dar nesta vila, às 9 da manhã, fica o nosso hospital com os seus serviços de assistência mais aumentados , muito beneficiando pessoas que dele necessitam de se utilizar e o público em geral.”
Para que haja memória refiro que aquando da publicação do seu terceiro livro “A Rampa”a inveja e o despudor de alguns médicos de Coimbra respondiam à pergunta : Então e o Miguel Torga?
-Como médico não conheço mas parece que escreve umas coisas…
E a alguns escritores em busca de fama à mesma pergunta respondiam :
Parece que é muito bom médico mas neste ultimo livro esqueceu-se do T…
Para que haja igualmente memória , lembro que o Dr. Fernando Valle demitido das suas funções de Subdelegado de Saúde do Concelho de Arganil a 6 de junho de 1949 e de Médico Municipal a 7 de Junho de 1949 por despacho do Conselho de Ministros de 1 de Junho de 1949 onde reza:
“os funcionários ou empregados, civis ou militares, que tenham revelado ou revelem espírito de oposição aos princípios fundamentais da Constituição Política , ou não deem garantia de cooperar na realização dos fins superiores do Estado, serão aposentados ou reformados, se a isso tiverem direito, ou demitidos em caso contrário”.
Miguel Torga esteve preso no Aljube onde escreveu “Ariane”e que nos surge logo no “Diário I”.
“Lisboa,Cadeia do Aljube, 1 de Janeiro de 1940
Ariane
Ariane é um navio.
Tem mastros , velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco,frio,
A este rio Tejo de Lisboa.
Carregado de sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades…
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades…
Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.
Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.”
Também , por uma vez, Fernando Valle foi preso.
Contou-me com a sua alegria e profunda modéstia que nem todos os presos eram iguais, pois tinha ido para o Aljube com as mãos livres enquanto o Dr. Lousã Henriques ia algemado por ser do Partido Comunista…
E que nas noites mais frias, como era o mais velho, havia sempre alguém que o cobria com a sua samarra.
Mas nem em Arganil teve sossego.
Noticía o “Jornal de Arganil” a 11 de Novembro de 1971
“Em reunião da mesa gerente da Santa Casa da Misericórdia de Arganil, realizada na última terça-feira, depois de ponderadas várias circunstâncias, foram designados para exercerem as funções de Director Clínico e de Director Clínico Adjunto do Hospital Condessa das Canas, respectivamente os Srs. Dr. Manuel Barreto de Almeida Leite e o Dr. Virgílio dos Reis Nunes, distintos médicos nesta vila.
Esta resolução foi tomada por o Sr. Dr. Fernando Valle , que há mais de quarenta anos exercia dedicada e proficientemente as funções de Director Clínico daquele estabelecimento de assistência ter atingido o limite de idade.
A mesa gerente tendo em consideração os altos serviços prestados ao hospital, por tão ilustre e distinto clínico exarou em acta desta reunião o seguinte:
-Durante mais de quarenta anos foi Director Clínico do Hospital Condessa das Canas , desta Santa Casa, o ilustre clínico Dr. Fernando Valle, que ao cargo e à sua função deu todo o seu esforço e saber, elevando o hospital à posição digna que ocupa e que , se já era tradição, muitíssimo melhor foi.
O Dr. Fernando Valle , deu ao hospital e aos seus doentes, todo o seu saber, todo o seu zelo, todo o seu carinho, toda a sua devoção, ele deu-lhe também uma assiduidade diária e uma constante assistência, digna dos maiores valores.
O doente foi e é sempre a sua preocupação e a ele pôs , regateio, a sua inteligência , o seu carinho, a sua amizade e o seu saber e cuidado, até ao limite das necessidades e das suas possibilidades.
Mais de quarenta anos no exercício da sua função e da sua profissão, respeitado e desejado por todos, a todos deixando saudades e de todos tendo saudades. Mas a lei obriga ao afastamento da função pública, ao atingir os setenta anos o limite de idade.
O Sr. Dr. Fernando Valle foi por ele atingido, deixou a função pública, mas continua a ser o médico competente, amigo, carinhoso, de todos e para todos os que ocorram aos seus serviços.”
Ao saber desta resolução o Povo de Arganil (onde Rita Novais, Irene Loureiro e , até tocando o sino a rebate , as irmãs Corina e Susana Ferreira se evidenciaram) espontaneamente, reuniu-se e exigiu o regresso de Côja para onde fora viver, do Dr. Fernando Valle nas funções de que tinha sido afastado.
O Povo de Arganil teve a percepção de que se estava em presença de um afastamento ilegal, com base ilegal, considerando que as funções exercidas não eram oficiais pois dependiam de uma entidade particular como era e é o caso da Santa Casa da Misericórdia de Arganil.
Recordo que o Sr. Francisco Castanheira de Carvalho, director do “Jornal de Arganil”mandou oferecer, graciosamente, uma casa sua para o Dr. Fernando Valle abrir o seu consultório.
Saúdo a presente mesa da Santa Casa da Misericórdia de Arganil que foi a grande obreira do Hospital de Cuidados Continuados “Dr. Fernando Valle” inaugurado e ao serviço da população de Arganil na antiga residência do Dr. Fernando Valle.
Saúdo-a também por ter suportado parte das despesas do monumento a Fernando Valle sendo igualmente de relevar os quatrocentos contos entregues pela comissão instituída para o efeito.
Lamento que, apesar de tanta teima o citado monumento se encontre desvirtuado das suas pedras (oferta da Santa Casa) e que o seu busto de bronze ( oferta do Povo de Arganil ) se encontre tão pobremente instalado não respeitando o monumento original.
Mas o que é estimulante nesta introdução é perceber melhor o contexto dos escritos de Miguel Torga na “Criação do Mundo” quando ao sexto dia nos apresenta o Dr. Vilela, nem mais nem menos que o nosso Dr. Fernando Valle e onde irei descodificar as personagens aos mais distraídos:
“Ora a natureza pedia-me naturalidade. Foi portanto, de bom grado que aceitei a sugestão do Dr. Vilela ( Fernando Valle) , Director Clínico da Misericórdia local para ir uma vez por semana dar consulta e operar a Travanca ( Arganil) .
Embora a maior parte dos serviços prestados fosse gratuita, sempre aparecia um caso ou outro remunerado .
Jeanne (Drª Andrée ,esposa de Miguel Torga)acompanhava-me.
Treinara-se e ajudava-me nas operações. Era uma viagem incómoda, escaldante no Verão e regelada no Inverno, mas que me proporcionava a satisfação dessa apetência congénita de uma autenticidade frontal em que nenhuma parte de mim se sentisse rejeitada ou rejeitasse fosse o que fosse.
O povo tinha isso: junto dele tudo sabia ao gosto da verdade. A ignorância era ignorância, a presunção presunção, a covardia covardia. As pessoas purificavam-se na sinceridade com que assumiam a condição. Numa dessas deslocações tive ocasião de verificar o que já sabia há muito, mas que só agora presenciava: a que extremos chegava o ódio do ditador.
Não perdoava aos opositores nem mesmo depois de mortos. Falecera o Dr. Vieira Sampaio (Embaixador Dr. Alberto da Veiga Simões , levado em ombros durante a Primeira Republica pelo povo de Arganil,quando na sua intenção de ligar o caminho de ferro até esta vila) historiador (com especial ênfase no estudo do Regente D. Pedro, primeiro duque de Coimbra ) e antigo diplomata (os vistos que concedeu em Berlim salvaram muitos judeus do holocausto nazi) , seu sobranceiro adversário ( exilado em Paris e proibido de regressar a Portugal quando a sua mãe faleceu no Hospital Condessa das Canas).
Exonerado do lugar de Embaixador e perseguido sem piedade, finara-se pouco menos que na miséria. Natural da vila (Arganil) manifestara sempre o desejo de ser nela sepultado. E a viúva respeitou-lhe a vontade. Mas quando o féretro chegou de Lisboa (vindo de Paris ) trazia uma tal comitiva policial que ninguém da terra foi capaz de vencer o medo e vir homenagear o patrício com a sua presença.
Há hora do enterro , apenas se adivinhavam vultos pusilânimes , comprometidos e de má consciência , a espreitar por detrás das vidraças voltadas para a rua deserta , onde o cortejo, vazio, parecia ainda mais fúnebre. Além dos esbirros , à paisana , que não arredaram pé do caixão enquanto o não viram debaixo dos torrões, só o Dr. Vilela e eu acompanhávamos o defunto à última morada .
O Dr. Vilela era a figura mais respeitada na região. Herdeiro de um nome honrado por várias gerações de médicos e magistrados, como que encarnava toda uma tradição de natural dignidade.
Conterrâneo e companheiro do Gonçalo (Dr. Alberto Martins de Carvalho, patrono da Biblioteca de Côja e já referenciado no terceiro dia da “Criação do Mundo” e professor do Liceu) juntamente com André ( Prof. Dr. Paulo Quintela) professor na Universidade , derivava dessa circunstância o nosso conhecimento. Creio que a princípio embirrava comigo, talvez porque não entendesse os meus versos de então. Com o decorrer do tempo, porém, tudo mudou.
Agora lia com agrado o que eu publicava , colaborávamos profissionalmente , franqueava-me a casa e ia-se firmando entre nós uma sólida amizade.
Democrata combativo, fora por isso demitido de Subdelegado de Saúde. Mas a repressão não passou daí. Rendida à sua humanidade, a multidão de que tratava desinteressadamente em todo o concelho, numa manifestação espontânea, forçara o governo a mantê-lo à frente do hospital. E nele continuava a dar dia e noite, aos outros o melhor de si. No intervalo das actividades clínicas, perdíamo-nos em longas conversas subversivas, que se alargavam a partir do dia em que me levou à presença dum antigo ministro da República (Dr. Alberto da Moura Pinto) , há pouco regressado do exílio (Brasil ), desterrado na sua Quinta do Vidoeiro (Quinta dos Vales-aros de Côja ) onde se extinguia a recordar os tempos passados , a maquinar a queda do ditador e a curtir uma bronquite crónica. Fino conversador, página viva de uma época de idealismo generoso, o velho político ilustrava a rara nobreza jacobina de mentalidades a que o despotismo da espada militar cortara as asas sem lhe ferir as raízes.
Rebento vivaz desse romantismo cívico, o Dr. Vilela, pela disponibilidade combativa e pelo respeito que lhe testemunhava, como que servia de esteio ao ânimo daquela vida cansada. E o exemplo dos dois quixotes de um sonho anacrónico de liberdade, igualdade e fraternidade, perdidos no fundo da província, fazia-me bem ao espírito. Era um Portugal teimoso, insubmisso, cabeçudo, que não se rendia à força de nenhuma evidência, mesmo quando ela se chamava o degredo ou a exoneração. E toda a semana aspirava por aquela quinta-feira (dia da feira semanal) que, sendo uma jornada árdua de trabalho, resultava afinal, num apaziguamento periódico da minha crispação permanente”.
Moura Pinto combateu em Espanha pela República, na Segunda Guerra Mundial em França e na resistência à Ditadura Militar no Brasil.
A sua filha Maria Luísa acompanhou sempre o seu pai e com ele viveu o exílio.
2. Guilherme Filipe de quem foi companheiro:
“Fajão, 10 de junho de 1971
“Funeral dum amigo pintor, que foi o mais convivente dos homens e o mais camarada dos artistas, e desceu à sepultura na fria e apagada solidão de um ignorado. Com lágrimas de saudade e palavras de justiça, ainda tentei tornar menos soturnas as pazadas de terra que lhe batiam maciças no caixão. Mas chovia, e a lama gorda e pesada do cemitério acabou por vencer a tenacidade do meu pranto e da minha fidelidade.
Soterrou-o tão violenta e completamente que não que não consigo arredar agora do espírito a imagem terrífica dum enterro absoluto”.
Sendo estas as palavras redondas que nos “Diários”ficaram para a eternidade, o “Jornal de Arganil” de 17 de Junho de 1971 transcreve todo o elogio fúnebre feito por Miguel Torga junto à sepultura de Guilherme Filipe:
“Não consentiu a morte que dissesses adeus aos teus amigos.
Ao verificar no livro da vida que eram tantos e tão fiéis, roída de inveja, apunhalou-te o coração à falsa fé, sem dar tempo a desobrigas sentimentais.
Quando receberam notícias de que estavas doente, já navegavas na barca de Caronte. Mas foi melhor assim. Ouvir palavras de renúncia e despedida eterna da boca de quem só sabia falar de esperança e permanência, ver coberto por uma cortina de trevas, olhos que sugeriam a perenidade da luz, testemunhar a inércia de um corpo que era o próprio dinamismo encarnado, seria superior às nossas forças. Real e ético como sempre te conhecemos, ficarias de repente com uma apenas, a temporal, a perecível, a menos verdadeira. E ninguém resistiria a semelhante desencanto. Ao passo que meramente adivinhado dentro de um caixão, metade amortalhado e metade predestinado, o melhor e o pior de ti fundiram-se numa unidade perfeita.
Através da vidraça de lágrimas e de saudade, a imaginação pode contemplar finalmente realizado o milagre dessa harmonia de contradições.
É contemplar o prodígio precisamente no sítio onde era cabido e desejado: neste Feijão que tanto amaste. Ao lado do imortal juiz das sentenças sibilinas
-Vi o que não vi
Morra que não morra
Deem um nó na corda
Que não corra…
E do Pascoal que , do alto da torre de cortiços, pedia que lhe chegassem o do fundo, é que fica perpetuamente preservada na sua digna moldura a tua humanidade de sonhador de impossíveis , de arquitecto de jardins universitários, de construtor de falanstérios utópicos, de artista que pintou a manta de todas as maneiras e cores. E é nesta paz de espírito dessa certeza que te deixamos aqui, enterrado a sete palmos e ressuscitado na legenda. Igual a ti mesmo para todo o sempre: transitório e fabuloso.”
3. Com Fernando Valle , o Mestre entre os Mestres
“Arganil, 29 de Julho de 1989
Plauto diz nas Bacantes que aquele que os deuses estimam morre cedo. Mas parece que não. Que , pelo contrário, lhe concedem uma longa vida. Que o deixam durar muito para que atinja a plenitude dos seus dons.
A nossa memória está cheia dos nomes desses bem-aventurados que puderam cumprir-se inteiramente nas artes , nas ciências, nas letras ou na simples maneira de existir.
É o caso do Dr. Fernando Valle ,Matusalém sem idade , teve tempo para ser no mundo a imagem paradigmática do jovem irreverente, do bom chefe de família, do amigo leal, do médico devotado, do político isento, do governante capaz, do cidadão exemplar.
Quem , como eu , se preza de o conhecer de longa data e de ter estado a seu lado nos bons e nos maus momentos, sabe com que dignidade atravessou os anos difíceis do nosso decurso colectivo contemporâneo, incompreendido por alguns, estremecido por muitos, respeitado por todos. É que foi sempre igual a si próprio em cada acto que praticou, sem cuidar das consequências dos mais arriscados, dramáticas em várias horas. Perseguido, preso, julgado, demitido da função pública, nenhuma prepotência o vergou ou desviou do recto caminho cívico da tolerância, da justiça e da liberdade.
Beirão acabado no temperamento pertinaz e no apego arreigado ao berço nativo, a sua Côja bem amada, escarolado de espírito como ela de semblante, cordial e idealista, o Dr. Fernando Valle é uma uma encarnação moderna do português de antanho que em cada terra era um símbolo. Humanidade rica e singular, infelizmente das poucas de que, na hora actual, nos podemos orgulhar e, confiadamente, afiançar à admiração das gerações vindoiras .
É esse o condão dos destinos privilegiados. Serem donos no presente de virtudes também gratas ao futuro, não há sociedade estruturada sem marcas de referência . Vemo-los em todas as nações, devotadamente erguidas, à escala do mérito a perpetuar, nos caminhos da sua história. É que, explicita ou implicitamente, os que procedem hoje, legitimam o comportamento no dos que procederam ontem.
Em bronze duradoiro, Arganil terá desta data em diante mais um desses miliários tutelares a indicar à posteridade o Norte e o Sul da verdade e do bem. Simultaneamente, a testemunhar-lhe a quitação de uma dívida que nós, os de agora, tínhamos em aberto. Dívida da nossa consciência moral que, uma vez paga, ao mesmo tempo nos desobriga e nobilita. O Dr. Fernando Valle não é por nós honrado nesta pública homenagem que lhe prestamos. Ele é que nos dá a honra de lha prestarmos.”
Este foi o último discurso público a que assisti de Miguel Torga em Arganil, aquando da homenagem nacional ao Dr. Fernando Valle e atribuição da medalha de ouro do Município de Arganil ao homenageado, e que teve lugar no Salão Nobre da Câmara Municipal de Arganil.
Recordo igualmente o notável jornal elaborado pelo António César Ventura e o almoço que tarde e más horas foi servido no pavilhão da Santa Casa da Misericórdia de Arganil, num dia de calor infernal.
Para trás ficara a inauguração do monumento a Fernando Valle, no Centro de Saúde de Arganil, e como ele era bonito todo em granito e bronze.
E até o Sr. Presidente da República, Dr. Mário Soares, fez uma pequena sesta em casa do José Vilhena…
importa pois sermos destas memórias:
Memória no sentido físico:
“ Como o gosto que é um tacto intimo”.
Memória no sentido moral:
“ Como o olfacto que é o gosto desfeito, entendido na sua essência e na sua definição”.
Memória no sentido espiritual:
“ Como o ouvir, que é o contacto da nossa memória com outras memórias e o entendimento disso”.
_ E memória em sentido divino: “ onde se atinge a plenitude da memória, já sem tacto nem contacto, mas na luz que simboliza a vida”.
_ É neste absoluto respeito que termino percorrendo todos os livros de poesia que Miguel Torga publicou em vida, apresentando o Poeta nos seus próprios versos, nas suas definições, na sua identidade.
Tudo ficará por dizer e é uma felicidade ser assim porque e última palavra será sempre de Miguel Torga:
“ A gente pouco sabe e pouco pode.
Conhece apenas duas regras de higiene
( Que o corpo se recusa a observar),
Três de moral
(que o intestino se recusa a praticar)
E uma ou duas de civilidade.
E digo mais:
Que vale a pena, afinal, haver história,
Haver arquitectura e haver, respeito
Por quantos souberam ser antes de nós
Bichos e poetas do seu casulo.
[...]
Carlos Maia Teixeira
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