top of page

U.S.     ENGLAND     FRANCE     BRASIL     PORTUGAL     ESPAÑOL

Quem Fala em Nome de Portugal? A Responsabilidade Democrática dos Media

Atualizado: 27 de out.

No artigo anterior, O Ecrã Inclinado: Como a Televisão Portuguesa se Tornou um Espelho da Direita, analisou-se o desequilíbrio estrutural dos espaços de comentário político em Portugal e a forma como o discurso televisivo foi sendo capturado por uma visão predominantemente conservadora da realidade.


Resta agora perguntar: quem fala realmente em nome de Portugal? E, talvez mais importante, quem cala as vozes que não cabem no ecrã?


O pluralismo não é um ornamento da democracia — é o seu alicerce. Se o comentário televisivo se tornou refém de interesses e conveniências, cabe aos media recuperar a ética do contraditório e devolver ao público o direito de ouvir o país inteiro.


Estas perguntas não são meros exercícios teóricos.


Elas tocam no coração da vida democrática — o direito de todos participarem na construção da opinião pública. Quando os media falham nesse dever, a democracia fica incompleta.


O que a televisão diz — e o que escolhe não dizer — tem efeitos profundos na perceção coletiva.


O comentário político, mesmo quando informal, funciona como uma forma de governo simbólico. Os rostos que surgem diariamente nas emissões televisivas acabam por exercer um poder de moldagem sobre as ideias, as emoções e os temores de milhões de cidadãos.


A questão ética é evidente: um espaço mediático desequilibrado é uma democracia amputada.


O pluralismo, ao contrário do que muitos pensam, não é apenas uma soma de vozes discordantes. É a possibilidade de ouvir perspectivas distintas com igual dignidade. A televisão portuguesa, porém, transformou a divergência em ornamento — uma forma de confirmar o poder das maiorias dominantes sob a aparência da controvérsia.


Os mesmos temas repetem-se: impostos, habitação, segurança, imigração. Mas o que não se repete é o ponto de vista. Falta a presença dos trabalhadores, das mulheres fora dos grandes centros, das minorias religiosas e étnicas, dos jovens precários, dos professores e enfermeiros que vivem longe da capital. A televisão fala do país, mas raramente com o país.


O resultado é um esvaziamento moral do debate público. As ideias progressistas aparecem como excessos ideológicos, as medidas sociais são tratadas como gastos, e o sofrimento concreto das pessoas é substituído por abstrações estatísticas. O discurso dominante elogia a eficiência e desconfia da empatia.


Mas o jornalismo — e sobretudo o comentário político — não é apenas uma técnica: é um serviço cívico. O seu papel é abrir espaço para a compreensão, não reforçar fronteiras invisíveis.


O poder invisível da curadoria


A responsabilidade começa antes da emissão. Quem decide o elenco de convidados exerce um poder comparável ao de um editor. No entanto, esse processo raramente é transparente. Em muitas redações televisivas, a escolha depende da rede de contactos pessoais, da disponibilidade de agenda e das “garantias de previsibilidade” — isto é, de quem não criará desconforto ao canal ou aos anunciantes.


Este círculo fechado conduz àquilo que poderíamos chamar curadoria de consenso: um sistema de seleção de vozes que exclui o imprevisto, o pensamento crítico e o risco de confronto real.


Há um receio quase estrutural de dar palco ao contraditório. A cultura televisiva prefere o debate ensaiado, onde todos sabem o seu papel e nenhum convidado ameaça as premissas do programa. Assim se cria uma paz artificial, uma harmonia sem verdade.


A pluralidade como exigência ética


A defesa da pluralidade mediática não é um capricho de minorias. É uma exigência da própria ideia de república. Uma sociedade informada depende da possibilidade de o cidadão ouvir argumentos divergentes e decidir por si.


O jornalismo que se limita a reproduzir as vozes do poder — político, económico ou cultural — torna-se cúmplice da desigualdade. A verdadeira neutralidade não é ausência de opinião: é justiça na distribuição da palavra.


A Europa aprendeu duramente o preço do silêncio mediático durante os anos 30. Regimes autoritários não começam com censura aberta, mas com a erosão gradual da diversidade de vozes. Quando as televisões se tornam monotónicas, as democracias começam a perder cor.


Reformar sem censurar


É possível corrigir o desequilíbrio sem cair na tentação do controlo.


Algumas medidas poderiam fortalecer a responsabilidade democrática dos media sem pôr em causa a liberdade de imprensa:


  1. Transparência editorial — Cada canal deveria publicar, trimestralmente, a lista de convidados e a respetiva distribuição ideológica e de género.


  2. Códigos de pluralismo — As entidades reguladoras poderiam exigir que os painéis de comentário político reflitam a diversidade real da sociedade portuguesa, não apenas a dos partidos.


  3. Formação ética e representativa — As escolas de jornalismo e comunicação deveriam incluir a dimensão social e ética da representação pública, de modo que futuros profissionais compreendam o impacto das suas escolhas.


  4. Espaço público descentralizado — Incentivar a presença de vozes fora de Lisboa, de diferentes origens e áreas profissionais, aproximando o comentário televisivo da realidade nacional.


Estas mudanças não dependem apenas de leis — dependem sobretudo de vontade cultural. A televisão, mais do que qualquer outro meio, tem a capacidade de educar sem parecer que educa. E é nesse poder discreto que reside a sua responsabilidade.


O valor do contraditório


Um debate verdadeiro não é aquele em que todos concordam com cortesia. É aquele onde o desacordo é vivido como exercício de liberdade. O contraditório não enfraquece a democracia — alimenta-a.


Quando as televisões substituem o conflito argumentativo pela encenação cordial, o país adormece na ilusão de consenso. E quando acorda, descobre que já não tem voz.


O papel do jornalista, nesse contexto, deve ser o de guardião da diversidade, não o de árbitro de aplausos. Moderar não é neutralizar; é garantir que o diferente tem espaço para existir.


Entre o entretenimento e a verdade


A tentação do espetáculo é compreensível. A televisão vive de audiências e a polémica vende. Mas o jornalismo perde o seu sentido quando se transforma em entretenimento político.


O país precisa de comentaristas que sintam a responsabilidade de formar consciência, não apenas de preencher grelhas.


O espectador português não é ingénuo: percebe quando lhe oferecem debate de superfície. O que falta é oferecer-lhe complexidade sem arrogância, pensamento sem ruído.


O comentário televisivo pode ser uma escola de cidadania — se recuperar o seu propósito original: explicar o poder e dar contexto ao que o poder cala.


O futuro do espaço público


Vivemos numa era de fragmentação digital, em que cada cidadão se informa através de bolhas personalizadas. Paradoxalmente, a televisão, que antes centralizava a narrativa nacional, tornou-se o último reduto do discurso comum. É por isso que a sua responsabilidade é hoje ainda maior.


Se as televisões generalistas renunciarem à pluralidade, o espaço público português ficará entregue à lógica das redes — rápidas, emotivas, e frequentemente manipuláveis.A ausência de diversidade no comentário televisivo não é apenas uma falha editorial: é uma ameaça estrutural à coesão social.


Recuperar a coragem


A primeira reforma necessária é interior: a coragem de desagradar.Um jornalista que teme a perda de simpatias políticas ou comerciais já não serve o público — serve o sistema.A liberdade de imprensa não se mede pela ausência de censura estatal, mas pela capacidade de enfrentar o poder com decência e coragem.


A democracia não precisa de jornalistas neutros — precisa de jornalistas íntegros.


E integridade, neste contexto, significa recusar a falsa equivalência entre o que é argumento e o que é manipulação. Dar voz ao racismo, ao negacionismo ou ao ódio não é pluralismo — é abdicação moral.


A voz de todos


A televisão tem de reaprender a ouvir. O país não é só a voz dos economistas ou dos ex-ministros: é também a voz das pessoas que vivem as consequências das políticas públicas. A verdadeira análise política começa quando o cidadão comum entra no ecrã.


O pluralismo não se constrói com equidistâncias, mas com empatia informada.Os media devem voltar a ser ponte entre o poder e a sociedade, não muralha entre eles.


Afinal, quem fala hoje em nome de Portugal?Falam os que têm microfone, não necessariamente os que têm razão.


Mas uma democracia amadurece quando as vozes esquecidas encontram finalmente eco — não por concessão, mas por justiça.


E talvez esse seja o verdadeiro desafio dos media portugueses: não apenas informar, mas reconhecer.


Reconhecer que há um país inteiro fora do estúdio — e que esse país também pensa, sofre, e merece ser ouvido.


Autor

Centro Editorial My Fraternity



Quem fala hoje em nome de Portugal? Este ensaio reflete sobre a responsabilidade democrática dos media e propõe um novo compromisso com a pluralidade, a integridade e o contraditório.
Painel de debate televisivo com múltiplos microfones — metáfora da responsabilidade democrática dos media.

Fhoto - © My Fraternity / Glenn Carstens - Peters (Unsplash) / Wix Media Support



© 1996 – 2025 by My Fraternity News.


Projeto independente de reflexão e cultura, nascido em formato impresso e digitalizado em 2017. Unido pela fraternidade, pela palavra e pela liberdade intelectual.

Comentários


bottom of page