Discurso de “Raul Proença” – 1978
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Discurso de “Raul Proença” – 1978

Caros e Respeitáveis Irmãos,

Meu Venerável Mestre Camara Pestana,

Bom Amigo Creswell de Sousa,


Na falta de qualidades para improvisar uma saudação à altura dos seus méritos, alinhavei à pressa, como é meu péssimo costume, algumas despretensiosas reflexões em torno desta justíssima manifestação de apreço.


Gostaria que estas minhas considerações tivessem maior densidade e pertinência, mas como para tanto me faltaram os dons e os vagares, procurei compensar de certo modo tal defeito sintonizando o meu testemunho numa consonância fraterna com alma límpida e generosa do homenageado.


Neste ambiente sadio de espontâneo afecto entre companheiros do mesmo ideal, é para mim particularmente desvanecedor enaltecer a abnegação , a verticalidade e o desassombro com que João Creswell de Sousa sempre tem servido e honrado a nossa imoredoura e grandiosa INSTITUIÇÃO.


Quem o acompanhou nas vicissitudes da adversidade político-social, quem com ele privou ou conhece de outiva ( como é o meu caso ) certas suas atitudes de aprumo e galhardia, de brio pessoal e independência de carácter não deixará por certo de me acompanhar quando afirmo que a grata presença do nosso homenageado é a corporização operosa e fecunda do espírito indestrutível da MAÇONARIA. Por isso mesmo, já que o nosso Irmão tem acompanhado e vivido intensamente as vicissitudes da Maçonaria portuguesa desde os dias tumultuosos da primeira Republica, entendi que a melhor homenagem que lhe poderia prestar seria dar-lhe conta, neste ensejo, dalgumas apreensões e conjecturas sobre a nossa qualidade de maçons em face do sobressalto, a mudança e a perplexidade que tão dramaticamente têm vindo a ensombrar a paisagem social do nosso tempo.


Perante o agudo confronto de ideologias gerador do estado de tensão em que se vive, é dever indeclinável da nossa Instituição fazer tudo por tudo no sentido de contribuir para que tal antagonismo se não resolva de forma catastrófica.


Pertencentes a uma Instituição de vida atribulada, umas vezes triunfante e outras quase destruída, condenada e reabilitada consoante o fluxo e refluxo das transformações sociais, cumpre-nos, para estarmos à altura dos acontecimentos, nunca perder de vista o que somos, donde vimos e para onde queremos ir.


Para sermos dignos do magistério moral e intelectual da nossa Ordem não nos é Iícito proceder como novos Pilatos, lavando as nossas mãos quanto ao destino futuro da Pátria onde nascemos. Temos que agir com esforço pertinaz, recta intenção, verdadeiro espírito maçónico, isto e, influir e participar no mundo profano tendo sempre em mira o bem da Pátria e o bem da Humanidade, nunca perdendo de vista os fins luminosos e a integridade dos meios empregados, como é timbre sagrado da nosso Instituição. O amor da pátria é perfeitamente compatível com o amor da Humanidade, senão até uma lei natural da simpatia que esta nasça e se desenvolva num grupo restrito para depois se alargar a agrupamentos mais vastos.


Nós não concebemos a Humanidade -como o Super-Organismo ou o Grande Ser, tal como a delinearam Augusto Comte e Emílio Durkeim. Para nos j os indivíduos não são apenas uma espécie de células dum Super-Organismo. O gregarismo social, nas sociedades humanas, não implica a integração completa do indivíduo no todo social. Pelo facto de se sentirem ligados uns aos outros pelos benefícios da civilização, a reciprocidade de serviços e os deveres de solidariedade, esses sentimentos de interdependência e fraternidade não anulam, a consciência que o indivíduo tem de responsável e respeitável como personalidade moral.


A nossa comparticipação na vida social não deve nunca ir ao ponto de sacrificar a liberdade, a vida interior, a personalidade de cade um de nós.

Queremos estar ao serviço da Humanidade, mas como agentes conscientes da sua evolução.


Só no respeito pela personalidade de cada um de nós, haverá séria garantia de cordialidade nas relações sociais, esteio adequado à realização do bem comum, alicerce moral da verdadeira fraternidade.


A Maçonaria, como sociedade de homens esclarecidos que procuram realizar as melhores condições de vida social, deve ter sempre presente que quando os valores morais se adulteram, logo alastra como mancha de óleo o veneno da indiferença egoísta e da intolerância sectária, logo se enfraquece e oblitera o anímico liame da solidariedade. Isso nos obriga a meditar seriamente no verdadeiro sentido da nossa actuação, a reflectir profundamente na exigente dialéctica dos fins e dos meios, de modo a impedir que a dignidade e a beleza dos fins se comprometa e desfigure enredada na torpeza dos meios.


Para que a nossa acção construtiva tenha direcção e impulso, e ao mesmo tempo conteúdo e força, é necessária a consciencialização progressiva da relação entre os meios e os fins, tendo sempre presente que nunca devemos subordinar os valores morais às contingências da acção.


A certo passo do Banquete de Platão, um. dos interlocutores, Pausãnias, diz o seguinte:

Toda a acção, como acção, não ê em si boa nem má. Aquilo que agora fazemos: beber, cantar, filosofar, nada disto é belo em si mesmo, mas pode tornar-se, conforme o modo como a acção se efectiva. Resulta acção boa, se se age em função da beleza e da justiça; acção má, se se age iniquamente“.

Aqui, como em tudo ou quase tudo em que pensou, o genial Platão foi primoroso e clarividente.


Com efeito, sem uma reflexão aprofundada sobre os fins que dão sentido d acção, sem um. conhecimento esclarecido dos valores que nos motivam, duvidosamente alcançaremos descortinar se agimos em função da beleza e da justiça, e por isso dificilmente saberemos se a nossa acção, como acção, é em si mesma boa ou má.


Nesta atmosfera jubilosa de confraternização3 a homenagem que entendemos dever prestar obedece a um propósito esclarecido e juste, as nossas palavras, mais ataviadas ou mais sóbrias, não deixam se ser repassadas de estreme sinceridade, a afectuosa harmonia deste efusivo e cordial encontro e sobredoirada pela pureza de intenções que a ela preside, e assim se toma claro como nesta nossa festa desafectada e familiar, o intento nobilitante e o modo singelo como a acção se efectiva não só ganham pleno sentido e cristalina razão de ser, como relevam da platónica exigência de beleza e de justiça.


Nesta hora penosa de opções decisivas, para alem da racionalização clara da herança cultural da Franco- -Maçonaria, o que sobre maneira urge é a clarificação insofismável da nossa filosofia de acção, o fundamento axiológico do nosso preceder.


A este propósito, nunca será de mais salientar que o verdadeiro maçon é um humanista, vê na consciência do homem o valor supremo, e consequentemente considera que a técnica, a economia, a política e todas as demais formas de actividade, só se justificam plenamente enquanto meios de promoção e dignificação da pessoa humana.


Em face do mundo absorvente da actividade política , parece-me ser imperioso e urgente proclamar uma vez por todas que a Maçonaria não tem que “fazer política”, no sentido de servir de instrumento a determinado ou determinados partidos políticos, não deve colocar-se nunca na situação servil de prolongamento ou acólito de qualquer grupo político, mas isso não impede que a nossa Instituição tenha uma nítida concepção política global, um pensamento articulado sobre os fenómenos político-sociais, em suma, uma filosofia política.


Dizia Ortega e Gasset com acida e percuciente ironia:


Aquele que não se ocupa de política é imoral, mas aquele que só se ocupa de política e tudo vê politicamente é estúpido“.


O meu povo e eu fizemos uma combinação: ele diz tudo o que lhe apraz, e eu faço tudo o que quero“.

É tempo de acordarmos da letargia a que fomos forçados durante 29 anos, não podemos continuar a viver no enlevo de modelos estereotipados, a mascavar recordações de conciliábulos, estratagemas, rabulices que fizeram história mas são hoje expedientes obsoletos e inaceitáveis.


Temos de ter a sabedoria de não voltar a determinados erros do passado, e a lúcida coragem de não querer continuar certos erros do presente.


Mal vai à nossa Instituição se ela continuar por muito mais tempo a dar a imagem dum estático museu de antiguidades, se ela se compraz em quedar-se num estéril contentamento de si própria.


Ao colocar o interesse nacional acima dos interesses partidários, a Maçonaria assume as responsabilidades inerentes à sua missão civilizadora, educativa, humanitária, e do mesmo passo recupera de pleno direito a sua legítima posição histórica no seio da sociedade portuguesa.


De harmonia com a sua formação humanista, entende a Maçonaria ser essencial e impreterível educar, esclarecer, civilizar os homens para livre e conscientemente se poder transformar a sociedade.


E evidente que a nossa Ordem não subestima a sempre possível influencia corruptora do económico sobre o político, não pretende negar importância às causas externas de natureza económica impeditivas da justiça social, o que afirma e sustenta é que a estrutura económica, a administração pública, o poder político nada alcançarão de duradoiro e válido enquanto a sua acção não for acompanhada duma removedora pedagogia cívica, uma profunda reforma das mentalidades, conforme tão luminosa e porfiadamente doutrinou António Sérgio.


Somos universalistas, sentimo-nos, como maçons, cidadãos do mundo, apostados em formar acima das Pátrias uma consciência internacional capaz de vir a plasmar laboriosamente uma Humanidade justa e livre. Mas esse tropismo para um consenso universal, essa vocação ecuménica, de modo nenhum obnubila ou arrefece o cálido e radicado amor do maçon à sua Pátria.


O maçon admira e respeita as outras nações, reconhece o valor das suas grandes realizações e qualidade, mas concentra naturalmente os seus esforços e energias para que o seu País se possa erguer prestigiado ente as nações do mundo, para que a terra dos seus antepassados venha a ser respeitada pelo seu apreciável contributo para a civilização, e sobretudo pela exemplaridade do seu civismo e a pratica dos seus altos valores morais.


É através dum patriotismo impoluto e esclarecido, aberto à colaboração com as outras nações em tudo quanto seja tarefa civilizadora e pacifica, que o maçon vislumbra a melhor possibilidade de conciliação do nacional e o universal.


Hoje em dia, os verdadeiros patriotas, atentos à desgraça do quotidiano, não podem nem devem disfarçar o vivo e magoado sentir da sua condição de portugueses defraudados da sua esperança, ilaqueados na incerteza do amanhã, e por isso vitalmente interessados em saber quais serão os possíveis métodos mais adequados, quais os remédios heróicos para salvar a sua Pátria infeliz.


Perante o inaudito fervilhar de egoísmos, o entrechoque de apetites e paixões descontroladas, caberia talvez à nossa Instituição ser o ressoador e o intérprete das aspirações mais profundas e renovadoras do agregado nacional.


De olhos postos no valor do seu povo, um povo que sempre deu às outras nações o esforço, o engenho, a aptidão que a sua Pátria madrasta e utópica nunca soube aproveitar, é imperioso que os maçons portugueses tomem posição nítida ante os problemas fundamentais da sociedade a que pertencem.


Sem pretender arvorar-nos em lideres de movimentos colectivos, devíamos formar um movimento de ideias, forjar um sistema de ideias, princípios orientadores que pudessem servir como referencial válido, contributo positivo para criar condições de maior justiça, bem-estar e harmonia social. Quanto ao valor e á necessidade das ideias, é sempre lição oportuna relembrar Antero de Quental, no seu combate de moço inconformista contra o que ele considerava a teocracia literária de Castilho, ao interrogar com o élan dos seus 23 anos o Mestre consagrado:

Mas Exmº Senhor, será possível viver sem ideias? . Esta é que é a grande questão! . De resto, já no século VI antes da nossa era, Pitágoras dizia que “as raças passam, os homens agitam-se nas lutas guerreiras ou nas pugnas por um bem maior, mas só as ideias ficam“.

E é bem verdade que os monarcas, as nações e os impérios caem sepultados e confundidos nos escombros do seu poderio, mas as ideias ficam resistindo á vérmina dos séculos, como mensagens de eras remotas eternizadas no molde das palavras,

Temos que sacudir o nosso torpor, fazer o nosso “aggiornamento“, forjar novas ideias que serão novas espadas de combate.


Temos que pôr à prova o nosso espirito arquitectónico, o espirito de construção e organização.


Devemos, pois, mais uma vez desbravar terreno, cavar caboucos, firmar alicerces, erguer paredes, aparelhar, o madeiramento, colocar a última trave, ampliar em dimensões de epopeia o nosso grandioso e nunca terminado Templo.


Vivemos na Maçonaria real, nunca esquecendo a Maçonaria ideal, visando sempre essa luz que incessantemente se nos furta, limite de que nos vamos aproximando pelo nosso esforço ascensional sem jamais, o atingirmos, já que a Maçonaria real, por mais evoluída e aperfeiçoada, será sempre uma assimptota do Bem e da Verdade.


Para nós, a sociedade terminal, o fim da história, a sociedade perfeita, ó tão-somente um ideal.


A reconciliação definitiva das contradições do homem e da natureza seria a revelação de que a estrutura do real não é dialéctica, uma vez que nessa sociedade terminal, sem contradições, deixaria de ter lugar a síntese que ultrapassa as contradições.


Propendemos a crer que em qualquer sociedade haverá, sempre contradições internas, aspectos imperfeitos, que implicam necessariamente a sua superação. A perfeição e um absoluto, é o Templo acabado, a almejada sublimidade, mas a despeito do nosso desvelado idealismo temos uma noção aguda do real e do possível, e por isso nos propomos ajudar a transformar as realidades sociais tendo sempre em atenção as possibilidades objectivas existentes em cada momento histórico.


É precisamente no intuito abnegado de contribuirmos para a construção duma sociedade de homens livres, onde não caibam situações de opressão, onde imperem a equidade, o respeito mútuo e a paz social, que nós nos prezemos de ser obreiros diligentes dum Templo de pedras vivas, união fraterna de homens capazes de se erguerem acima da mediocridade, lutadores idealistas, mas idealistas sem ilusões , com os pés bem fincados na terra, homens que visam um ideal, combatem por um ideal, mas não perdem de vista as fortes solicitações do real, os condicionalismos, as balizas da realidade, e por isso mesmo têm em conta o peso dos factos e a força dos acontecimentos.


Precisamos pois de estar motivados, unidos, bem preparados através duma escrupulosa tomada de consciência para essa tarefa ingente que nos espera, pois só assim a nossa virtualidade construtiva, a nossa vocação demiúrgica de obreiros dum mundo novo, continuara indestrutível., pacificadora e fecunda.


Numa rápida abordagem do problema da nossa tomada de posição face à presente confrontação ideológica, começarei por aduzir, numa caracterização um tanto sumaria, que na vida social surgem habitualmente em contraste duas ideologias bem diferenciadas: as ideologias de conservação e as ideologias de revolução.


Nas primeiras, a vontade de poder é sobretudo dirigida à manutenção da ordem social vigente, com as suas hierarquias e privilégios. Nas segundas, a vontade de poder é orientada para uma brusca mutação da ordem social existente.


Como é óbvio, entre estes dois tipos extremos, claramente se concebe uma ou mais posições que ao mesmo tempo que recusam o fixismo das ideologias de conservação também rejeitam o radicalismo violento das ideologias de revolução. Tentando pôr em ordem no agravado conflito entre grupos de ideologias extremadas, a Maçonaria devia estudar e preconizar uma mediação inteligente, uma síntese integradora dos elementos porventura validos dos vários campos em luta.


Mas atenção: – não se trata aqui de aconselhar um eclectismo fruste, de recomendar soluções de aparente compromisso, pois em demasia temos visto enganosas fachadas duma conciliação espúria e frágil que acaba sempre por não agradar a gregos nem a troianos.


Trata-se de estudar fórmulas ponderadas para um ajustamento sério, uma sinergia de esforços convergentes para a resolução de objectivos próximos, conciliáveis, susceptíveis de se tornar comuns.


Mas esse escopo de conciliação de tendências e união de esforços, sempre que tal se nos afigure possível nada tem a ver com certas tentativas de camaradagem ilusória e ambígua, mal firmada em tibiezas e indefinições.


A Maçonaria não deixará nunca de optar, com todos os riscos que as opções implicam, dizendo sim a certos princípios e planos, e redondamente não a outros, apoiando determinadas teses e repudiando outras, sem se deixar cair na cómoda tentação das meias-tintas.


É exactamente por optar pela moderação inteligente, o equilíbrio, a arguciosa contrastaria das declarações, argumentos e atitudes, que entre o Estado-Providência e o Estado “laissez faire, laissez passer“, deve a Maçonaria dar preferência inequívoca à doutrina segundo a qual o Estado nem deve pretender substituir a iniciativa dos indivíduos nem abandoná-la à sua sorte, ou seja, nem um Estado tentacular que tudo faz, nem um Estado de braços cruzados que tudo deixa a fazer.


Como liberal e democrata, prefere o maçon o rigor da lei à insegurança do arbítrio, deseja a supremacia do poder civil, defende um governo que governe com eficiência, exerça a autoridade legitima fazendo cumprir as leis, pois de outro modo nunca será possível impedir a degradação social nem garantir a liberdade dos cidadãos.


O que o maçon veementemente rejeita é a oblatividade utópica de certos políticos sempre prontos, por conveniências de momento, a pactuar com o inimigo jurado, sempre apostados na veleidade de conciliar inconciliáveis, reduzir irredutíveis, converter fanáticos empedernidos, tolerar todos os desvarios de nefelibatas visionários e agitadores profissionais.


O maçon é profundamente tolerante, mas sabe por experiência histórica, que se as transigências não têm a tempo, um terminante limite, está aberto o caminho a todo um cortejo de aventuras cujo desfecho inevitável é a solução ditatorial.


Todos nós sabemos que a história não é só feita de revoluções, mas também de gestações lentas, de fermentos obscuros e latentes, de erosões graduais e imperceptíveis.

E minha convicção que no prosseguimento da sua longa tradição histórica, a Maçonaria saberá continuar a manter um vivo sentimento de justiça e liberdade, aliado ao amor da ordem e da estabilidade social, pois sabe que o mundo precisa em justa proporção duma certa dose de estabilidade e de renovação, de ordem e de progresso. Com efeito, uma sociedade civilizada precisa da consciência conformada, prudente, que sobretudo preze o lado ordeiro, hierarquizado, da vida social.


Mas permite, ao mesmo tempo, o fermento da consciência inquieta, desajustada, como factor que remove e estimula o corpo social, não o deixando entorpecer num imobilismo atro fiador.


Para que a ordem social se não degrade em privilégio nem se dissolva em anarquia, torna-se necessário uma acção mediadora, um centro de convergência e irradiação de ideias, em cuja potência dialéctica se possam integrar o devir e a permanência, a liberdade e a autoridade, a fraternidade e a justiça.


Esse papel relevantíssimo estaria naturalmente indicado a uma Instituição como a nossa, que devia agigantar-se neste horizonte cerrado de tensões sociais, como o baluarte moral das mais nobres aspirações humanas.


Neste clima de incertezas e preocupações, se a Maçonaria não quer deixar-se adormecer e esvair por inanição, se quiser continuar a ser, como lhe cumpre, um reduto altaneiro de dignidade e lucidez, terá que reafirmar valores, criar ideias orientadoras, perspectivar os problemas do homem.


É profundamente errado e fatal supor que é possível esconjurar o mal presente, afastar as nuvens negras do miserabilismo aviltante e do sectarismo larvado, pela simples recitação duma cartilha de supostas verdades intangíveis.


Quanto a nós, temos o dever indeclinável de viver na pratica, de harmonia com aquilo que dizemos ser.


Se proclamamos enfaticamente o dever de solidariedade e depois nos esquivamos a cumpri-lo, fingindo ignorar certas circunstâncias angustiosas em que é vitalmente inadiável auxiliar um irmão, estamos a falsear os nossos princípios, a trair hipocritamente aquilo que a antiguidade nos legou de mais belo e precioso.


Se a Maçonaria não verberar energicamente todo e qual quer afloramento de indiferença egoísta, se deixar enfraquecer o sentido da sua alta responsabilidade como Instituição civilizadora e humanitária, estará a contribuir, por omissão, para que se adense o clima de terrorismo e de guerra de todos contra todos, atmosfera carregada de ódios onde o homem, lobo do homem, diminuído na sua dignidade e ameaçado na sua segurança, perde o sentimento fraterno e a verticalidade moral. A despeito do optimismo quimérico de certos malabaristas da retórica, o certo é que não há fogos florais de redentorismo ideológico que possam esconder a confusão mental, o desnorteamento e a cegueira de certos radicalismos, transviados daqueles ideais de liberdade e solidariedade que fizeram a glória da espécie humana.


No principio deste arrazoado, fiz menção de compensar a minha falta de dons expositivos pelo que chamei a consonância fraterna com a alma límpida e generosa do homenageado.

Espero que ele não discorde do teor geral das minhas considerações, mas mesmo que num ou noutro ponto ele possa discordar, estou certo de que não duvidará da honestidade do meu propósito nem da afirmação da minha amizade.


De resto ele habituou-me, honra lhe seja, a que eu lhe falasse sempre com a máxima franqueza.


Creio que vem aqui a talhe de foice, lembrar estas palavras lapidares do saudoso Professor e nosso irmão Vitorino Nemésio:

mesmo na hora da homenagem, a busca da verdade crítica, ou o que se nos afigura como tal, é o caminho mais honesto para a autenticidade do elogio“.

Foi isso que, na medida das minhas fracas forças, eu procurei fazer. Acrescentarei poucas palavras para acentuar que não foi por acaso que João Creswell de Sousa conseguiu granjear tantas, tão perduráveis e sólidas amizades. Senhor duma forte personalidade, lutador de fibra voluntariosa, alia ao saber de experiências feito uma tenacidade inquebrantável na defesa das suas convicções.


Se acrescentar que as suas qualidades de rectidão e tolerância lhe permitem desculpar agravos e atenuar (quando não sanar) antagonismos, suponho ter delineado o núcleo de predicados morais e intelectuais que o impõem ao respeito e à estima de todas as pessoas bem formadas que têm tido o privilégio de o conhecer.


É exactamente essa peculiar constelação de méritos que me foi grato aqui trazer à colação, que lhe têm permitido arrostar com subtileza psicológica e vigilante determinação as responsabilidades, nem sempre fáceis, do seu nobre lugar de Venerável.


Se não estou em erro, foi Nietzche quem disse que “o homem deve imprimir sobre a sua vida fugaz a imagem da eternidade“.


Para tomar mais expressiva uma imagem inicialmente esboçada, apraz-me neste lance confessar que sempre que me é dado presenciar João Creswell de Sousa a subir a custo as escadas do Palácio, ofegante e pertinaz como quem se finca e alteia na escarpa para atingir o planalto, vejo consubstanciada nessa lição de firmeza e energia a intrepidez antiga, o ânimo decidido, o espirito altivo e indomável da Maçonaria.


Agradeço com o mais cordial bem-haja ao Irmão ou Irmãos de quem partiu a magnifica ideia desta bem merecida consagração, e é com vivo regozijo que eu saúdo em João Creswell de Sousa a exemplar dignidade dum maçon cuja vida tem sido em grande parte dedicada a um altíssimo ideal que a todos nos transcende.


Posto isto, espero que aceite com indulgente simpatia esta despretensiosa mensagem de obscuro mérito, onde a espaços rebrilha a cintilação duma quixotesca esperança que teima em não morrer.


Discurso de “Raul Proença” – 1978
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