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O Sangue e a Bandeira

Quando a violência política volta a rondar os EUA.


Há momentos em que um tiro não é apenas um tiro. É um eco. Um eco que atravessa décadas, ressuscitando fantasmas que se julgavam adormecidos.


O assassinato de Charlie Kirk, em plena universidade de Utah, com milhares de jovens como testemunhas, não é apenas a morte de um homem; é o sinal de que a América voltou a caminhar num terreno de pólvora, onde a política já não se resolve apenas com palavras, mas com pólvora e sangue.


Lembro-me de 1968, embora não o tenha vivido.


Kennedy tombado, Luther King abatido na varanda de um motel, estudantes nas ruas, helicópteros sobrevoando cidades em chamas. Tudo isso parecia distante, fechado nos livros ou nas memórias de quem envelheceu com a esperança quebrada. E, no entanto, aqui estamos de novo: um país onde a violência política já não é acidente, mas rotina.


Charlie Kirk, conservador convicto, aliado de Trump, polémico, muitas vezes abrasivo, tornou-se alvo de ódio.


A sua morte foi celebrada por uns e lamentada por outros, como se a vida humana tivesse deixado de ser sagrada e passasse a ser apenas um emblema partidário.


Essa indiferença — ou pior, essa satisfação mórbida — talvez seja o retrato mais cruel do nosso tempo. A violência deixou de ser apenas instrumento extremo: é agora entretenimento digital, bandeira ideológica, catarse tribal.


Há quem diga que os Estados Unidos vivem hoje uma espécie de “tribalismo furioso”.


Os partidos já não dialogam, apenas se digladiam.


As redes sociais amplificam as palavras como megafones de ódio, viciando milhões na indignação permanente.


Cada mensagem, cada algoritmo, funciona como fagulha atirada a uma floresta seca.


O resultado é previsível: cresce a tolerância ao intolerável.


Pesquisas recentes revelam que muitos cidadãos já aceitam a violência como forma legítima de ação política. Isto não é apenas um dado sociológico; é um veneno que corrói a ideia de democracia por dentro.


Não devemos enganar-nos: a década de 1960 foi terrível, mas tinha uma saída.


Quando a guerra acabou e os direitos civis entraram, a nação encontrou um ponto de viragem.


Hoje, porém, não se vê horizonte.


A fragmentação é maior, a confiança nos líderes é mínima e a disponibilidade de armas transforma qualquer ressentimento em massacre instantâneo.


Um estudante radicalizado tem em mãos a mesma capacidade de destruição que outrora era exclusiva dos exércitos.


O que me impressiona não é só a violência, mas a naturalização da violência.


A forma como a morte de Kirk, em vez de unir no repúdio, serviu apenas para aprofundar trincheiras.


À esquerda, houve quem celebrasse. À direita, quem clamasse vingança.


Entre ambos, o silêncio cúmplice de uma sociedade habituada a ver sangue no ecrã, incapaz de distinguir a tragédia da série televisiva.


E no entanto, há algo que deve ser dito: não se trata apenas da América.


A violência política é um vírus que atravessa fronteiras.


Também na Europa vemos sinais inquietantes — deputados ameaçados, jornalistas perseguidos, minorias transformadas em alvo fácil de campanhas de ódio.


O que acontece em Washington não fica em Washington. O fumo que sobe de lá chega-nos sempre às narinas.


Trump ordenou bandeiras a meia haste, gesto solene mas insuficiente.


Mais do que o luto, seria necessário o apelo à reconciliação, à contenção das palavras, ao regresso do adversário em vez do inimigo. Mas não.


A resposta política foi dividir ainda mais, culpar a “esquerda radical”, alimentar o fogo em vez de o apagar.


É esta irresponsabilidade que torna o presente mais perigoso que os anos 1960. Porque, se naquela época havia líderes que pediam calma, hoje temos dirigentes que vivem do caos.


Dir-me-ão: e nós, que estamos do outro lado do Atlântico, o que nos cabe pensar?


Talvez apenas isto: a democracia não morre de repente, morre por erosão. Morre quando cada um de nós aceita que a violência é inevitável. Morre quando o adversário é desumanizado. Morre quando o sangue se torna argumento.


O assassinato de Charlie Kirk é, acima de tudo, um espelho.


Não apenas da América, mas do mundo em que vivemos.


Um mundo onde o ódio encontrou novas plataformas, novos microfones, novas justificações. E onde cada bandeira a meia haste é menos um sinal de respeito do que um aviso.


Não sei se este será o começo de um novo ciclo de violência, ou apenas mais um capítulo sombrio.


Mas sei que a pergunta que os americanos hoje se fazem — “que país somos nós?” — é também a nossa.


Porque ninguém está imune à tentação de odiar. E a violência, uma vez libertada, não reconhece fronteiras.


Bandeira dos Estados Unidos a meia haste, sinal de luto nacional após o assassinato de Charlie Kirk
Bandeira dos EUA

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