DEUSES / DEUS
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DEUSES / DEUS

DICIONÁRIO CASUAL DE CONCEITOS


DEUSES / DEUS


« Todas as coisas estão cheias de deuses ».


Isto foi dito por Tales de Mileto, aquele que foi apresentado como o primeiro filósofo da Hélade. Pode ver-se nesta frase o reflexo do animismo mais primitivo ou a génese rudimentar do panteísmo. Mas também aqui se pode discernir a clarividência do espanto suscitado por tudo o que nos cerca. Não será espantosa a vida , no seu aparente absurdo?


Assim, os primeiros raios do sol grego vieram dizer-nos que tudo se encontrava cheio de deuses. Não se pontifique, de modo primário, que nisto se continha a irradiação da ignorância. Faz falta ao modo contemporâneo do pensar este difusa percepção de que tudo está cheio de deuses - e de deuses no plural.


O caminho do saber definiu-se a partir deste espanto inicial. Ou seja, nasceu a partir do não-saber disciplinado e formalizado. Um filósofo entretanto despenhado pela garganta do esquecimento, Herbert Spencer, definiu o divino como o Incognoscível. Os deuses iniciais não foram senão os Incognoscíveis pressentidos. Vieram depois as sucessivas formalizações , desde as do Uno de Parménides às da Beleza e do Bem de Platão, passando pelas Eneadas, de Plotino.


Ou seja, os deuses múltiplos de que falava Tales foram-se contraindo e rarificando. Doutrinações orientais, como as do Mazdaísmo, conceberam o mundo espiritual como uma eterna luta entre as entidades metafísicas do Bem e do Mal. O múltiplo dos deuses é conduzido à unidade nas três religiões "do Livro" : no judaísmo, no cristianismo e no islamismo.


A religião "do Livro bíblico" derrancou implacavelmente o panteão greco-romano. Ao fazê-lo, substituiu uma miríade de deuses divertidos e facetos por um deus martirizado, macerado, ícone de todas as fustigações e vexames, depois transferidos para as sucessivas gerações de fiéis. Às religiões do prazer ou dos prazeres greco-romanos sucedeu-se no Ocidente a religião da culpa e do resgate através de mecanismos de auto-punição. A redução do campo do divino conduziu inevitavelmente ao monoteísmo. As coisas deixaram de estar "cheias de Deuses".


Foi , na Europa, o resultado da alegada transcendência das Ideias Puras de Platão. Por isso, parece-nos adequada a avaliação de Nietzsche, que sustentou que o cristianismo não foi senão um "platonismo para o povo" .


@ A.C.H.


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