Sociedade: "O Poder da Europa", por Álvaro Carva. | Congresso na Universidade de Aveiro e Instituto Político e Social em Espanha |
"O PODER DA EUROPA"
Três acontecimentos: os “Dez Mandamentos”[1]; os plebeus que arrancaram a “Lei das Doze Tábuas”[2]; os “sete pecados capitais”[3].
Séculos depois...
Assis, Fevereiro A.D. 1197
Querido Lotario,
Confiando na minha sorte, escrevo-te para Messina. Espero que quando a minha carta chegar, ainda aí estejas. Fiquei muito preocupada com a tua última mensagem: o que queres dizer com isso de que vais apostar tudo na tua causa? Não compreendo. Significa que estás disposto a renunciar a tudo aquilo que te desvie do teu objectivo? Assusta-me esse tom. Para quê tanto mistério comigo? Deus escutou as nossas preces e o imperador começou a aproximar-se do papa depois de tantas afrontas. Sem o apoio dos príncipes alemães, embora a França e a Alemanha, o Chipre e a Arménia sejam ainda seus vassalos, embora a Hungria e a Dinamarca continuem prostadas a seus pés, Henrique VI sabe que a única possibilidade que tem para que o seu filho o suceda no trono é contar com o apoio de Celestino. A Igreja está dividida [...] És um cardeal da Igreja Católica, o que mais podes desejar neste momento?
[...]
Ortolana
- “É verdade que queres ser Papa?”, perguntam-lhe.
Com olhar matreiro responde: - “Um dia sê-lo-ei”, previa o nosso jovem.
Mas responde-me. - “Por que me fazes essa pergunta?”
- “Se me acompanhares dar-te-ei pormenores”.
A notícia corria de forma rápida. Os príncipes da Saxónia e da Turíngia tinham-se negado a apoiar o império hereditário que é proposto por Henrique VI.
***
Reconheceu, certamente, que estamos a escrever sobre Lotario de Segni. Que nasceu em 1160.
Cronologicamente deixo-lhe ainda mais umas brevíssimas notas. Em 1174 Saladino toma Damasco. Em 1179 realiza-se o terceiro Concílio de Latrão.
O que levou estes homens a agirem desta forma?
A imposição, o poder, evoca paixões e variadas dramaturgias.
Séculos depois de imposições diversas, os Estados abastados impõem a “Lei dos cinco continentes”. Logo depois a imposição do “Império dos mares”.
Estas particularidades irresistíveis fornecem-nos indicações úteis da amplitude e da duração das etapas do homem e das suas organizações. As descobertas ultramarinas nos séculos XV e XVI modelam as regras do direito internacional. A revolução industrial forçou-nos às regras coloniais de confiscação da supremacia da Europa sobre os povos do ultramar. A descolonização tornou-se tão importante como o fenómeno das descobertas. Lidou-se com o imprevisível no direito internacional.
Sempre nos envolvemos em relações de dominação que com algum jeito de imposição justificamos.
Hoje temos uma Europa que controla e que queremos controlar. Ao moldarmos esta Europa aos nossos desígnios convertemos as leis, a chave para entender a experiência do poder. As nossas relações são de domínio sempre sobre os outros.
Mas por que escrevo este texto apesar de ser convidado pela Direcção e editor do Instituto Politico e Social ? Faço-o para compreender. A minha forma de reflectir .
O PODER Admiramos o poder. Enlouquecemos pelo poder. Utilizamos o poder em todas as circunstâncias. Fascinamo-nos com o poder. O poder é beleza, segredo, visibilidade, realidades contraditórias.
Como nos diz Hobbes, “Dou como primeira inclinação natural de toda a humanidade”, um “perpétuo e incansável desejo de conseguir poder, que só cessa com a morte”.
John Galbraith diz que “Do contexto e do exercício do poder, deriva uma sensação de valor auto-induzido. Em nenhum outro aspecto da existência humana se encontra a vaidade submetida a tanto risco”.
Se tivermos em conta Nietzsch, Foucault, Boursdieu, Luhmann, de entre outros constatamos uma inversão no conceito de poder com as tradições mais antigas. Foucault diz-nos que “O poder, se é visto de perto, não é algo que divide entre os que o ostentam e os que não o têm ou o sofrem. O poder é e deve ser analisado como algo que circula e funciona – por assim dizer – em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguém. Nunca é uma propriedade, como uma riqueza ou um bem”.
Há uma história muito interessante contada por Dennis Reynolds, quando nos diz que na reunião de Munique que ocorreu entre Chamberlain e Hitler, ambos aceitaram a invasão da Polónia, para que assim Hitler pudesse defender os habitantes de língua alemã. É certo que os ingleses não estavam envolvidos de forma directa neste acontecimento, sendo certo que os franceses tinham um tratado de defesa com a Polónia. Mas Chamberlain assumiu pessoalmente este movimento por razões pessoais de desejo e poder. Já Luhmann esclareceu que “O poder não é um instrumento ao serviço da vontade. É o poder que engendra a vontade”.
Poder é pois o acto de agir, mandar, deliberar. Expressa-se nas diversas relações sociais, de diversas formas, sempre com sentido amplo e para além da função de poder exercido pelo Estado. Na politica definem-no como capacidade de imposição, sem alternativa de desobediência, autoridade, legitimidade e leis imutáveis.
A IMUTABILIDADE DA POLÍTICA EUROPEIA
Assiste-se hoje a uma prodigiosa interpelação da Europa que desde há séculos se projecta no “seu” poder de direito dominante. É certo que se o contestarmos ele reivindica que o direito se reconhece num pretenso carácter de imutabilidade. Como se o direito fosse um culto. E um poder legitimado. O direito pelo direito? Ou a consistência do estabelecido para uma sociologia apaziguada?
As instituições seculares, as interacções pessoais, as leis são a força ou a fuga do exercício de poder. De onde emana o poder da Europa?
Eu não sei se terei talento suficiente para esta breve reflexão. Por pensar e duvidar. Se tento saber sofro, medito e torno-me um ente sem interesse e sem utilidade. Se vejo e constato o que se passa com os outros fico inquieto e pelo respeito sobre esses outros deixo de duvidar do poder europeu. Mas sem esforço percebo que o poder fascina. Trata-se de uma realidade contraditória mas que o europeu cultiva com visibilidade e grandeza, na sua miséria e espanto. Esta conflitualidade agarra-se a conceitos como a liberdade para o tornar menos suspeito. Uma realidade contraditória que o lord Acton esclarece com ”o poder corrompe sempre”.
Se a imposição do direito europeu ou qualquer outro se torna uma referência imutável, toda a mudança se torna ímpia. Torna-se assim numa realidade de direito dominante, de conservação, de privilégios. Quem se atreverá a contrariar posteriormente esta “neutralidade”? Mas quem aceitará o poder se ele corrompe?
Esta “neutralidade” colocada nestas condições não reflecte a fidelidade, as aspirações da união europeia; ou será que exprime as necessidades que Shakespeare expressou como “É belo ter a força de um gigante, mas é horrível usá-la como um gigante”?
O poder europeu, este culto totémico é a felicidade dos homens da nossa época. Trata-se de um monumento, de um sacrossanto que muitos perseguem e por ele lutam incansavelmente.
As normas são pois negociadas em conjunto para se revestirem de um carácter de eternidade que as proteja contra o desgaste.
Seria então possível e no momento actual abdicarmos da união europeia? Haveria uma força suficiente para um movimento natural de metodologia, de filosofia, que alterasse esta manifestação de uma união europeia? É certo que a história nos demonstra que com os tempos os sistemas mudam e a mudança provoca a evolução das sociedades.
Somos a consciência da participação igualitária em interesses comuns. Por isso se democratizaram as relações entre os Estados, fossem eles grandes, médios e pequenos. Apresentaram-se os Estados numa relação de igualdade nesta “velha” Europa de direitos, a favor da paz e na instauração de uma nova ordem mundial. Exigiu-se a democratização e a universalidade do sistema.
Ma há quem defenda que é o tempo e a duração do próprio poder que leva à actual situação politica e igualitária que vivemos. Que estamos perante um fim em si mesmo. Como se houvesse um infinito e este actual modelo seria o fim desta longa evolução. Mas como formulou Bergson e outros pensadores, se o tempo é infinito e nos encontrámos no fim de um percurso, por que será que todas as coisas nos sucederam já? Por que aconteceram todas de forma sucessiva? Por que já tudo se sucedeu? O que na verdade Bergson esclarece é que não há uma certa concepção linear do tempo como uma recta infinita ou que se estende infinitamente em ambas as direcções. Esclarecendo-nos que o tempo é basicamente duração. E a duração é o que constitui a nossa consciência do fenómenos. Este modelo de que a duração é a nossa consciência em todas as etapas do processo de elaboração da decisão, ela torna-se numa “ordem do dia” dos governos europeus e dos negócios mundiais de qualquer natureza. A ponto da família ser hoje a única defesa contra esta mercantilização e este poder que um dia pode estar em queda, sem que no entanto haja um outro.
Esta é a Europa de hoje. Com relações difíceis que são contaminadas pelo poder. Numa relação mundial e de submissão a poderes com demasiadas crenças para um sistema que muitos queriam de denominação.
A Legitimidade do poder europeu
Legitime, palavra de origem latina. Legitimidade que deriva deste legítimo. Mas que legitimidade pode existir se ela se situa no limiar das deontologias e axiologias do “ser” e do “dever ser”?
Deixemos esta reflexão para uma outra oportunidade. Situemo-nos por agora no termo da sua história que está associada ao poder, ou até direi de outra forma mais moderna, à autoridade. Ou como dizem os que não escondem o gosto do poder, “o poder legitimado”. Nesta Europa de legitimidades e de governabilidade, a associação entre o poder e o governante conforma-nos a uma mútua convivência.
Antes dos gregos esta relação de poder como se pode constatar nos brevíssimos exemplos inicias, apontava-nos para um caminho de vontade privada. Uma determinação de que o próprio governante seria a própria encarnação do poder. Um verdadeiro critério do justo, do injusto, da paz e da guerra. Mais tarde este conceito era perspectivado numa relação de um principio de interconexão entre os termos gregos e romanos. Como se as leis exprimissem a vontade colectiva pelo interesse público. Uma linha nem sempre visível mas onde o interesse público era percebido com uma visão ampla, que iria muito para além da politica. Atravessava as próprias relações sociais. A passagem pela Idade Média redefine-se e as autoridades cristãs esforçam-se por rejeitar o público e a moral argumentativa da sociedade. Deixa de existir a politica idealizada pelos gregos e existe apenas o poder e o privado assume a vanguarda das relações das lideranças sociais. Na Modernidade há as oscilações históricas e, segundo Humberto Eco, a racionalidade moderna não é apenas composta de ideal de conhecimento seguro, de verdade, de paz, mas de conflito e contingência. Percebe-se que a Modernidade tratou a legitimidade como se este termo tivesse o sinónimo de legalidade. E na Europa de hoje?
Os europeus já estão para além da democracia de auto-afirmação e do auto-conhecimento. Se um Estado não assumisse estas duas vertentes anunciadas tornar-se-ia num Estado de Excepção, colocando a sua natureza de poder com a ausência de legitimação democrática. Estamos num poder europeu que já predomina a própria formação social do poder, tornando-o aceite e desejável, difuso e pessoal, institucionalizado e regredido. A linguagem tornou-se o poder expresso que usa as palavras para a compreensão e obediência. Numa utopia de que este poder serve o bem público, de forma elegante, sóbria e clara, objectiva e persuasiva. Utilizam a linguagem do poder entre o amor e a paixão. Uma forma moderna de impor o poder sem desobediência. O poder legítimo e sancionado de hoje coincide com a autoridade, com a paixão, com a manutenção das barreiras sociais para que se nutra o desejo desse sentimento. Tratam-se os cidadãos como apaixonados, promovendo-lhes a felicidade e a satisfação, como se houvesse um sentimento afectivo. Mas estudos de psicologia humana dizem-nos que os sentimentos de um estado de paixão dificilmente ultrapassa os três anos. A paixão pelos governados esforça-se para que estes sentimentos de propaganda e publicidade politica não se percam nos três anos subsequentes a uma eleição. E se a paixão se perder, com ela, existirá uma eventual derrota nas eleições. A tristeza invade as pessoas e as dificuldades atingem a plenitude levando o “eleitor-apaixonado” a ser só feliz se conseguir o objecto da sua paixão. Mas ainda temos um outro conceito que pode abalar esta paixão pela politica europeia ou até, pela politica de cada um dos Estados Europeus: a mentira.
A Mentira
Descrever declarações de verdade pode levar a acreditar que essa declaração seja suspeita, que seja falsa, desde que uma das personagens (o ouvinte) acredite nesta desfiguração da verdade. A desfiguração da verdade coincide com um conjunto de acontecimentos que podem ser até uma verdade com a intenção de causar uma acção de engano. Esta desfiguração pressupõe a presença de, pelo menos, duas personagens: o falante e o ouvinte. Mas para esta breve reflexão o que me parece de maior relevância é a desfiguração consciente da verdade. E que desfigurações conscientes da verdade podemos desde já traduzir?
Numa perspectiva brevíssima, constatamos que a anulação de uma transformação consiste em eliminar um subconjunto de acontecimentos, sabendo que nesta politica europeia se promove, com demasiada frequência, a ocultação do estado real dessas mesmas ocorrências. E com situações limite sempre que utilizam o silêncio. Que podemos denominar de “mentira ignorativa”. Onde o “não vi” e o “não sei” são status pragmáticos e semânticos demasiadas vezes utilizados.
Há também a transformação consciente de acontecimentos e objectos “estranhos”, que se utilizam para produzirem anulação. E não me devendo alongar, a transformação da indefinição que se assemelha a uma anulação parcial e que o exemplo seguinte esclarece: “Quem foi o ministro?” “Um conhecido”. É certo que há ainda variadíssimas outras modalidades e transformações da mentira politica. Mas estas observações já nos permitem perceber que este é o nosso tempo, onde a desfiguração da verdade tem causas ontológicas, gnoseológicas e linguísticas. Tal como a inconstância da realidade, a delimitação imprecisa dos objectos, acontecimentos e situações; ou onde a virtude de actos e mensagens são desfigurados da verdade a fim de se evitar falar da realidade da consciência e, por fim, o carácter generalizado com a referência inexacta de objectos e acontecimentos em textos.
[1] Os Dez Mandamentos ou o Decálogo é o nome dado ao conjunto de leis que, segundo a Bíblia, teriam sido originalmente escritos por Deus em tábuas de pedra entregues ao profeta Moisés.
[2] Lex Duodecim Tabularum ou simplesmente Duodecim Tabulae, em latim, ou a Lei das Doze Tábuas, constituía uma antiga legislação que está na origem do Direito Romano. Tornou-se no cerne da Constituição da República Romana e do mos maiorum (leis antigas que se tornaram regras de conduta).
[3] Trata-se de uma classificação conhecida como “vícios” surgida no Cristianismo e que o Catolicismo utilizou para controlar, proteger e educar os seus seguidores.